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“Fodabilidade” como capital: desejo, mercado e intimidade em disputa

Inicio esta coluna esclarecendo que, tomarei o termo “fodabilidade” (fuckability) como um marcador de valor simbólico que distingue quem aparece como desejável — e quem é sistematicamente excluído — nas políticas contemporâneas da sexualidade. 


Em diálogo com Amia Srivasan e com a noção de capital simbólico de Pierre Bourdieu, argumento que a “fodabilidade” opera como moeda social conversível em prestígio, acesso e visibilidade, especialmente na cultura de plataformas. No meio do caminho, intimidade e mercado se embaralham: escolhe-se parceiro como quem escolhe investimento.


Em The Right to Sex, Amia Srivasan recusa a ideia de um “direito a ser desejado” e, ao mesmo tempo, rejeita que o desejo seja da esfera puramente privada. Preferências são produzidas por arranjos de poder — gênero, raça, classe, corpo, idade, deficiência — que distribuem, desigualmente, a visibilidade erótica. A pergunta politicamente interessante não é “quem tem direito ao sexo?”, mas “como as estruturas sociais fabricam o desejo sexual?”. Nesse quadro, “fodabilidade” nomeia a legibilidade pública do corpo como passível de desejo: um efeito social antes de ser propriedade individual.


Seguindo as ideias de Bourdieu, a “fodabilidade” pode ser lida como capital simbólico: um crédito de reconhecimento que circula e se converte em outras moedas (social, cultural, até econômica). Dormir com alguém “de alto valor” — no sentido definido pelo mercado — rende status por associação. A escolha de parceiros passa a obedecer a racionalidades instrumentais: como quem compra um produto — um curso, uma certificação — ou agenda uma viagem de férias, seleciona-se por função, por ganhos de rede (network), por visibilidade. O corpo vira portfólio; o encontro, posicionamento.


Aplicativos e redes traduzem sinais afetivo-sexuais em métricas (matches, curtidas, DMs) e essas métricas viram reputação visível. Aprende-se a otimizar-se para o feed: o ângulo, a imagem, o léxico “vendável”. Perfis e bios viram currículos — ou delírios — com listas de exclusão (“o que não tolero”, “com quem não fico”), frequentemente recodificando preconceitos como gosto: “afeminado não, pau não, gordo não, magro demais não, negro não…”. A cola entre cultura do desempenho e relações transforma intimidade em mercado: Que tipo de ganhos essa união pode me dar? Quem poderia ajudar alavancar a minha carreira? Que tipo de parceria seria interessante para ser mostrada no Instagram?


É inegável nesse ecossistema, a fixação na imagem: um corpo perfeito, um tipo específico de corpo legitimado como padrão e, cada vez mais, a chancela de uma profissão bem-sucedida como certificado de desejo. A “fodabilidade” fica atrelada a “valores agregados” e racionais, como se o outro fosse um pacote de atributos negociáveis. Forma-se uma espécie de uma psicoesfera totalmente desimplicada: relações apáticas e desinvestidas de sentimentos sinceros, pouca disposição para a singularidade e sujeitos que parecem não existir fora de uma performance — o sujeito-carrossel do Instagram, o sujeito-dinheiro, o sujeito-harmonização (facial, corporal) e o sujeito-testosterona. 


Importante esclarecer que, quando preferências replicam hierarquias de raça, gênero, corporalidade e classe, escolhas pessoais viram mecanismos de reprodução social. A “fodabilidade” se concentra onde já há vantagem: branquitude, juventude, profissões socialmente reconhecidas (médicos, magistrados, engenheiros etc.) e certos padrões de consumo. O verniz meritocrático (“só busco compatibilidade”) mascara opressões antigas em moldes novos. Srivasan insiste: não há uma lista de quem devemos desejar, mas é legítimo criticar desejos quando eles operam como uma alavanca de exclusão.


Há uma confusão ruidosa entre intimidade e mercado. Intimidade não é acúmulo de informações sobre o outro, nem uma espécie de reconhecimento mútuo em vitrine; é respeito, lealdade, escuta, paciência — uma espécie de tempo demorado no outro e não cotado. 


Do ponto de vista psicanalítico, o encontro amoroso convoca o real: aquilo que ultrapassa às imagens e aos roteiros. Paradoxalmente, é quando “começa a dar errado” que muitas relações começam, de fato, a ter chance de dar certo: surgem limites, diferenças, vulnerabilidades, demandas que não cabem no feed. O conflito, longe de prova de falência, pode ser oportunidade de transformação do laço — desde que haja disposição para trabalho relacional, e não apenas para contabilidade de ganhos.


Nomear a “fodabilidade” explicita a mercantilização já em curso. Entendê-la como capital simbólico ajuda a seguir o dinheiro do desejo: quem emite, quem lucra, quem fica de fora. Com Srivasan, o desafio não é garantir um direito a ser desejado e sim, disputar as condições que produzem o desejo e reabrir a possibilidade de intimidades não cotadas — aquelas que suportam e entendem a estranheza do outro, nossa condição humana. Entre capitais e conversões, fico com o simbólico que não vira score. E confesso: o mais interessante em mim não é o que tenho (isso já está à mostra); é justamente o que me falta.

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Diógenes Carvalho é ator, advogado e professor universitário. Pós-doutor em Direito e Psicologia, doutor em Psicologia, mestre em Direito, pós-graduado em Psicanálise Clínica e tem diploma de Direito Europeu. Psicanalista em formação pelo Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo.


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