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Artigo de Opinião: O que fica quando o ano acaba

Quando o ano se aproxima do fim, sigo percebendo que termino mais um ciclo ainda mais curioso pela vida. A cada ano que passa, algo em mim observa com mais atenção esse movimento silencioso que atravessa tudo: os detalhes, as sutilezas, mas também as zonas mais obscuras. Tenho ficado mais afinado às narrativas, tanto às longas quanto às breves. Gosto das histórias de taxistas e motoristas de Uber, dessas que nascem numa corrida entre Guarulhos e Pinheiros. Gosto de uma ideia que chega de repente, de uma nova ocupação, de uma nova paixão. Tenho a sensação de que meu tempo é este: o tempo em que tudo precisa valer a pena.


Dezembro, no entanto, tem um modo próprio de nos atravessar. É como se o calendário apertasse e pedisse que fizéssemos nossos balanços de forma silenciosa. Angústias sem nome começam a ocupar espaço: conflitos familiares que reaparecem; a irmã que não encontra a cunhada na ceia de Natal; o dinheiro que não deu; algumas metas que ficaram pelo caminho. Cada um carrega uma espécie de inventário íntimo. Qual é o seu medo de fim de ano? Às vezes, nem sabemos dizer, apenas sentimos.


Somos seres que chegam ao mundo em estado de total desamparo. Nenhum outro primata nasce tão dependente quanto o sapiens. Nossa dependência é radical. Somos entranhados no outro. Por isso, sentir-se só, lá no fundo, é sentir-se em risco. Não é uma falha moral, é pura biologia. É sobrevivência. Mas crescer exige um deslocamento: aprender, aos poucos, a cuidar de si, a construir um amparo interno que não substitui o outro, mas impede que qualquer ausência dele nos desorganize por completo.


Nesse ponto da vida, algo muda. O medo deixa de ser apenas o abandono e passa a ser outro: o medo de abandonar a si mesmo, de silenciar a própria voz para garantir a permanência de alguém. Esse é um giro importante da experiência adulta, sobretudo quando percebemos que perder o outro dói, mas perder a si mesmo custa muito mais caro.


Outro tema que retorna com força nessa época é o medo de não ter cumprido metas, de ter fracassado em alguma coisa. Aqui entramos no velho confronto entre o eu possível e o eu idealizado, entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. As resoluções de fim de ano costumam fabricar versões imaginárias de nós mesmos: mais produtivos, mais felizes, mais ajustados, mais magros, mais ricos, mais flexíveis. Ainda continuo querendo iniciar o pilates! Enquanto isso, a vida real acontece em outro ritmo, cheia de desvios e reinícios.


Talvez valha inverter a pergunta. Em vez de “por que não consegui?”, arriscar: essas metas tinham significado? Ou eram apenas expectativas herdadas? Ouvi esses dias, de uma amiga atriz, que a palavra significado são “signos que ficam”, como se fossem marcas que permanecem porque fizeram sentido em algum ponto do caminho. Quando o desejo é verdadeiro, ele não exige esforço; ele nos convoca, e algo se organiza.


Ao fechar o ano, talvez o exercício mais honesto seja este: reconhecer o que ficou, o que marcou e o que ainda nos convoca a seguir curiosos. Porque, no fim, talvez viver seja isso: colecionar signos ficados.

Que neste fim de ano você possa sustentar quem é. Com delicadeza, benevolência e generosidade. Sem violência, apenas entendendo que o sentido da vida é viver ou, talvez, no máximo, viver naquilo que faz sentido.

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Diógenes Carvalho é Ator, Advogado, Professor Associado da FDUFG. Pós-graduado em Psicanálise Clínica e Psicanalista em formação pelo Instituto Sedes Sapientiae/SP, Pós-doutor em Direito pela FDUSP/UFRGS e Psicologia pela PUCGO, Doutor em Psicologia PUCGO e Mestre em Direito pela UNIFRAN/SP.

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