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Artigo de opinião: Mete um Block Nele – o silêncio digital

“Mete um block nele”, João Gomes canta, e a multidão responde. É quase um hino nacional da vida emocional contemporânea. Sofreu? Bloqueia. Ficou confuso? Some. O amor ou o interesse acabou? Silêncio.


Bloquear virou o novo verbo da autopreservação: um jeito rápido, limpo e sem conversa de apagar o outro da tela e, quem sabe, da memória. Mas será mesmo que apagar é esquecer?


Eu arrisco a dizer que não. Tenho ficado curioso diante desses novos mecanismos de defesa: o block como símbolo da recusa em lidar com o conflito. É que rejeitar, ou ser rejeitado, nunca foi simples. Rejeitar convoca culpa, medo e vergonha; ser rejeitado fere o narcisismo. Quando o outro nos apaga, não é só o vínculo que se rompe , mas é um eu que se racha um pouco também.


Em outros tempos, a rejeição ainda deixava cartas, telefonemas ou olhares silenciosos no café da manhã. Hoje, ela vem com uma notificação que não abre, uma conversa azul que nunca volta ou uma reação de emoji. E, na pressa de não sofrer, a gente mete um block antes que o outro o faça. O gesto digital substitui o luto simbólico, ou seja, não há palavra, nem explicação: só o clique e o vazio.


Esse gesto tão cotidiano — bloquear, sumir, desaparecer, deixar de seguir — é um ato de expulsão simbólica: o sujeito corta o outro não apenas do contato, mas da própria possibilidade de elaboração. É uma defesa contra a dor, claro, mas também contra o encontro. No fundo, o bloqueio revela a dificuldade de sustentar o mal-estar da recusa ou da perda. Mas quanto mais a gente bloqueia, mais o inconsciente trabalha. Porque o desejo não some com o clique , ele apenas muda de lugar.


As redes sociais tornaram a rejeição instantânea e asséptica: ninguém precisa mais enfrentar o olhar do outro, nem o próprio desconforto. O amor, que sempre foi um terreno de incertezas, virou um território de controle. O risco, o erro, o mal-entendido, tudo isso é cancelado junto com o contato.


Talvez os psicanalistas tenha razão ao afirmar que é só atravessando o desconforto que algo em nós amadurece. Rejeitar e ser rejeitado são experiências que, quando não apagadas, nos ensinam a reconhecer o limite do nosso desejo e o lugar do outro. E aqui vale lembrar: precisar conversar, sentir vontade de perguntar, é levar a sério que o outro é outro. E só ele pode dar notícias de si mesmo. E, também, crer na ideia de que, ao dar notícias de si, o outro também nos revela algo de nós.


A rejeição é uma das experiências mais intensas da vida psíquica e na mesma medida em que é difícil ser rejeitado, é igualmente difícil rejeitar.


A recusa, dizer “não”, colocar um limite, encerrar um vínculo, confronta o sujeito com a culpa, o medo de ferir e o mal-estar ético de frustrar o desejo alheio. No entanto, em vez de elaborar essa dificuldade, muitos se mantêm em vínculos precários, em casamentos ruins, em namoros falidos ou recorrem hoje a formas abruptas e desumanizadas de afastamento: bloquear no WhatsApp ou no Instagram, sumir sem explicação, como se o silêncio fosse uma maneira neutra de lidar com o outro.


Esses gestos expressam um modo contemporâneo de defesa contra o conflito e a alteridade. Bloquear é um ato simbólico de expulsão: evita o confronto com a falta, mas também suprime a chance de elaboração. O outro é apagado, e com ele, a possibilidade de reconhecer o impacto ético do próprio desejo.


As redes sociais e o mundo digital tornaram a rejeição instantânea, higiênica e sem restos, o que produz relações cada vez mais frágeis e menos empáticas.


Nesse cenário, rejeitar sem palavra e desaparecer sem diálogo são sintomas de uma desumanização afetiva, em que o sujeito prefere o controle da tela à vulnerabilidade do encontro.


Paradoxalmente, talvez, é justamente ao sustentar o desconforto da recusa e da perda, que o sujeito se constitui de forma mais ética e singular. Assim, a rejeição, tanto sofrida quanto praticada, revela-se um campo essencial de elaboração do desejo, da empatia e da responsabilidade psíquica com o outro.


Diógenes Carvalho

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Advogado e professor universitário com pós-doutorado em Direito do Consumidor e Psicologia.

Atua também como autor de livros e artigos sobre direito e consumo, com ampla experiência acadêmica e prática.

Com atuação docente em diversas instituições de ensino e participação em eventos no Brasil e no exterior, traz ao debate uma visão jurídica e interdisciplinar.


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